Em tempo de Copa do Mundo...

... nunca mais eu quis saber de futebol, de mais nada... - 2006
Da série* : “... uma história que você nunca mais esqueceu?” - 2000/2007



Bordado e objeto (poliamida, algodão, arame) sobre travesseiro 
20 cm x 63 cm x 45 cm - Coleção particular
* Série baseada nos depoimentos de adolescentes internados em instituição por infringirem as leis.  

Texto bordado em torno da peça: Quando eu era pequeno me pai me levava sempre pra ver ele jogando no campinho. O sonho do meu pai era ser jogador de futebol... Aí ele morreu com um tiro da polícia, na guerra do morro, tava vindo do trabalho... Nunca mais eu quis saber de futebol, de mais nada. Cresci revoltado, sangue frio, entrei pro crime... Meu pai era tudo pra mim...


Durante 3 anos (2000 a 2003), visitei adolescentes internados em instituição destinada à recuperação de jovens que infringiram as leis.  No início, o que pretendia ser uma pesquisa, passou a caracterizar meses de convivência diária, diálogos, trocas culturais e afetivas.
Experimentando uma proposta inédita e completamente desconhecida por mim, várias obras  surgiram durante este período. Todas com base nas conversas e trocas estabelecidas com os adolescentes. Uma delas é a instalação:  “… uma história que você nunca mais esqueceu?”
Diante de tantas histórias vividas (desde a violência doméstica e a do dia a dia nas ruas; traumas, sentimentos de traição, agressões - e até mesmo alegrias e histórias de amizade e solidariedade...) minha curiosidade era se eles haviam guardado aquela história que nunca mais esqueceram. Depois de muitos encontros estas histórias foram surgindo recuperadas de suas memórias, e a cada dia mais adolescentes tinham interesse em me conhecer e conversar.
Nos trabalhos desta série criei cenas baseadas nas respostas dos jovens do que para eles era impossível esquecer. 
Conheci mais de 100 meninos. E ouvir cada história individualmente me fez perceber o quanto estava sendo importante nossa troca. Naquele lugar, sozinha, entendi que se houvesse uma verdadeira intenção de transformação pelas intuições, estudar cada caso separadamente, cada história de vida, seria a grande oportunidade para que eles pudessem ter suas vidas reconstruídas.
De minha parte entendi que depois de criar vínculos e estar tão presente no cotidiano diário, não poderia ir embora e desaparecer de repente. Decidi então continuar na instituição até que o último adolescente que eu havia conhecido individualmente tivesse sido posto em liberdade. Para que não experimentassem mais uma vez o sentimento de abandono constante em suas vidas. 
Após a realização das obras, já envolvida e inserida naquele contexto junto aos adolescentes e os profissionais que lá trabalhavam, continuei frequentando a instituição desta vez como voluntária e criando propostas inéditas que surgiam de nossas trocas. 
Experimentar este processo na arte e na vida foi inesquecível e a partir dele pretendo dar prosseguimento a proposta de viver a arte como o encontro com o outro, na tentativa de transformar as relações das pessoas diante de universos e questões ainda tão desconhecidos.

Rosana Palazyan, 2004


publicado em 23 junho de 2014

Da série: Multiplicação das espécies - Oxalis corniculata Homo, 2014

Oxalis corniculata Homo

                     Da série: Multiplicação das espécies



Oxalis corniculata Homo, 2014
Da série: Multiplicação das espécies
18 cm x 14,7 cm x 1.5 cm

Edição de 50 
Saiba mais : Clube Hall / Arte Hall

Oxalis corniculata Homo com edição de 50 peças, é a primeira obra da série Multiplicação das espécies.  E dá prosseguimento à proposta de questionar e gerar reflexão a classificações, definições e rótulos que transformam seres vivos em daninhas.
Como em obras anteriores, tem base na pesquisa em livros de agronomia (com definições de plantas consideradas daninhas) em paralelo às frases que usualmente são citadas por uma parte da mídia e da sociedade, relacionando-as às pessoas que se encontram em situação de exclusão social – pessoas com as quais venho trabalhando em encontros e conversas, gerando trocas e dentro de um profundo processo ao longo dos últimos anos.
Neste caso, a frase encontrada durante a pesquisa e que deu origem a esta obra - “... tem grande capacidade de multiplicação das espécies...” - me fez pensar na relação entre dois questionamentos: a facilidade de multiplicação das espécies de seres vivos considerados “daninhas”; e a proposição de múltiplos de obras de arte.
Dentro deste contexto de multiplicação de espécies/imagens/obras de arte, a escolha de materiais e procedimentos começou a ser definido:


- Em cada peça a imagem da espécie Oxalis corniculata foi impressa com tinta para carimbo, utilizando a própria planta como matriz; e com papel carbono foi desenhada a imagem de uma figura humana. Ambas deram origem ao título da obra Oxalis corniculata Homo - nome científico criado para esta nova espécie – planta/homem.
Meio pioneiro e tradicional para duplicação de textos, desenhos e documentos - o papel carbono - e almofadas impregnadas com tinta para carimbos como meio de multiplicação de formas e marcas – ambos utilizados usualmente na cor azul -  foram aqui recuperados como memória visual  - hoje esquecidos e substituídos pela tecnologia.
     - Uma pequena garrafa de vidro que guarda em seu interior sementes originais da planta Oxalis corniculata; deixa transparecer a imagem do homem desenhada sobre o tecido, como se juntos ambos fossem as sementes desta nova espécie. Trazendo a ideia de dispersão de sementes como a forma mais tradicional e eficaz ainda hoje na multiplicação das espécies.
Em aproximadamente 70 dias de produção, a primeira fase consistiu na coleta de plantas nas ruas do RJ e seu o cultivo dentro do atelier. Durante todo o processo o ciclo natural de floração e nascimento das sementes foi respeitado até que estas pudessem ser coletadas no período de dispersão e secagem em seu tempo natural para em seguida serem utilizadas.

detalhe
O carimbo produzido com a inscrição: “Daninha?” ao questionar subverte a ideia de carimbos e rótulos. Dentro desta poética, mais uma vez proponho ao espectador que se depare em uma situação sem verdades e sem repostas absolutas.

 Delicadas e frágeis, sem resistência ao impacto da impressão, suas formas foram se transformando. Além disso, foram utilizadas como matrizes novas plantas da mesma espécie com formatos diferentes encontrados na natureza. Os desenhos da figura humana produzidos um a um, mesmo que com papel carbono também tomaram formas individuais.  
Por este motivo, e pela execução totalmente manual de todos os outros procedimentos realizados peça por peça, as obras têm aparência diferenciada. Mais uma vez fazendo refletir sobre a questão de multiplicação e identidade.  
O que nesta obra se tornou mais evidente, tem sido recorrente em meu processo. Tanto o homem quanto a natureza são investigados de forma não homogênea. Buscando ouvir individualmente cada história, respeitando suas identidades, numa tentativa para o entendimento de uma nova sociedade.

                                        Rosana Palazyan, Maio de 2014


publicado em 24 maio de 2014

Personal memories with a scarf and a photo | Kathimerini


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Amazing Stories: Emotionally Charged Narrative in Pictures | New York Times




ART REVIEW | CONNECTICUT

Amazing Stories: Emotionally Charged Narrative in Pictures


Smneedham
STORIES WITH BITE At the Aldrich Contemporary Art Museum, one of Rosana Palazyan’s embroideries in “Untitled” (1996) that detail the shooting death of her brother.


Published: September 11, 2009

“Pretty Tough: Contemporary Storytelling,” the new show at the Aldrich Contemporary Art Museum, is filled with work that is beautiful, craftsmanlike, meticulous — and frequently alarming.

Organized by Mónica Ramírez-Montagut, the show includes the work of nine women, artists from half a dozen countries, all of whom use figurative imagery to tell stories — some personal and some about broader issues like warfare, the environment, intolerance or the challenges facing women in various parts of the world.

Tender, fairy-tale-like depictions are common, as in Kyung Jeon’s series of delicate pencil and watercolor drawings on traditional Korean rice paper. They tell the tragic love story of a young Asian woman dressed in nothing but her panties. The story is loosely based on the artist’s personal experiences, embellished with colorful elements of fantasy.
Kate Clark’s sculptures are somewhat more detached, but equally successful as works of visual theater. The artist creates part-human, part-animal taxidermy sculptures to draw attention to our shared primeval origins. “Matriarch” (2009) is particularly unsettling, consisting of a human face attached to the neck of a zebra. It hangs from the wall like a hunting trophy.
Other artists have sought ways to accommodate and update traditional forms of art and crafts. Ambreen Butt, for example, conflates traditional Indian and Persian miniature painting with contemporary practices and motifs to create fantastic narratives that reflect on her experiences as a Pakistani woman living in the United States. Many of the paintings portray scenes of social and political protest, especially Muslim women protesting warfare and terrorism.
Orly Cogan works with secondhand textiles, predominantly table linens, scarves, bedsheets and children’s quilts, onto which she stitches and embroiders new imagery. The updates tend to be provocative, including scenes of gluttony and drug taking, couples fighting or having sex, all of which are designed to challenge social stereotypes embedded in childhood fairy tales.
Embroidery is also the medium of choice for Rosana Palazyan, an artist from Rio de Janeiro, where her brother was killed in a gun accident. For “Untitled” (1996), the artist collected embroidered white handkerchiefs from women in her family and then added her own stitching, the designs telling in sequential images the story of her brother’s death. Seldom have I seen a more effective and poignant use of embroidery in contemporary art.
This is probably the first time I have seen the work of Liliana Porter in an art museum in the New York region, which seems extraordinary, given her seniority (she is 68) and the caliber of her work. Her art gives us pleasure, but, like a lot of the other pieces in this show, it also surprises viewers once they work out what it is about: her tiny toy figurines stuck in or cleaning up large spills of black paint on white canvases are a metaphor for domestic drudgery.
Female relationships, social mores governing women, and the burden of family ties are popular themes for Amy Cutler, whose simple, colorful pencil drawings are both seductive and repellent. Her works here depict groups of silent, often sad and sometimes exhausted or depressed-looking women in surreal circumstances. In “Multiplicity” (2007), a group of tiny naked girls emerge from the headless torso of a seated woman.
Equally surreal is Stacey Steers’s animated video “Phantom Canyon” (2006), in which the artist re-enacts the autobiographical story of a woman trapped in an unhappy relationship and her eventual escape through the Grand Canyon. The animation was filmed using close to 4,000 handmade collages, each of which evokes an event, memory or emotion tied to the experience. Together, they possess the kind of concentrated hit of good reality television.
What I like about Ms. Steers’s video, and many other works in this show, is that they are emotionally charged. Turning away from trivial gags and amusement, these artists take art to a deeper, more real place. The result can be pretty tough to stomach, but also immensely rewarding for those willing to make the effort.

“Pretty Tough: Contemporary Storytelling,” Aldrich Contemporary Art Museum, 258 Main Street, Ridgefield, Conn., through Jan. 3. Information: (203) 438-4519 or aldrichart.org.

A version of this article appeared in print on September 13, 2009,
on page CT11 of the New York edition.



http://www.nytimes.com/2009/09/13/nyregion/13artct.html?_r=1&

Rosana Palazyan - Galeria Leme | Art Nexus


In the Place of the Other



Solo Show 
Rosana Palazyan 
ArtNexus #64 - Arte en Colombia #110
Apr - Jun 2007


São Paulo, Brazil

Institution:
Galería Leme


Claudia Laudanno 

For Rosana Palazyan (born 1963, Rio de Janeiro) the contemporary work of art is always in a provisional and ephemeral relationship with time. From the most recent decade of her artistic trajectory, it is possible to identify the presence of a canon, but it is never the same as it varies according to the ‘situations’ she generates. These are governed by a dominant theme that traverses her works in sculpture, performance, and installation: her bet on an aesthetic value that goes beyond time and above all locates itself beyond the present. A canon and its deconstruction, then, appear as the two fundamental axes of her prolific career. 
In this sense, Palazyan is very conscious of the fact that we live in a ‘post-’ culture. But it is well known that Nietzsche already critiqued the narcissism of the present with great foresight. Thus, with her recent individual exhibition, Palazyan demonstrates that both art and culture find themselves in a situation of extreme fragility. The interaction with the public and the public’s interpretive cooperation along various degrees of empathy are decisive in this exhibition. Here, experimentation is the constant reflection of bewilderment, and it tirelessly seeks a horizon of reception in which ‘interventions’ take place ‘between’ us’that is to say, along an expansive reticular grid that encompasses subjects, objects, and the surrounding world. What does it mean for Palazyan to find that ‘small gap’ through which the identification of the ‘other’ circulates and thus to understand her site-specific, process-oriented works? It means, first of all, to transform the artistic experience into an aesthetic, ethical, and anthropological experience, in a more radical version of the ‘linguistic turn’ in contemporary thought, in order to point out, ‘Facts and events already are language.’
If facts themselves, or what our senses present to us as facts, are mediated by language, then everything is rendered infinitely interpretable. In this context, for Palazyan, truth and certitude belong wholly in the realm of language and not in the realm of events or spaces, which she ‘appropriates’ and modifies on a temporary basis. This implies a critical awareness of the increasingly more noticeable presence of the colossal process of loss of meaning that has evolved from the destruction of all histories, references, and univocal finalities.
Palazyan’s events and performances possess a script or plot subject to modification and the participation of several people, without distinction between authors, interpreters, and the public. This fits with an idea shared by Rauschenberg and Cage: creating works and acts without attributing importance to the artist as author. By negotiating the obstacle of authorship, Palazyan allows herself to work with a heterogeneous and anonymous mass of ‘performing agents,’ to shape a minimal and delicate platform from which to bring together the ‘others’ in order not only to ‘experiment with’ but also to analyze, catalogue, test, and codify the actions and behaviors of others who are for an ephemeral moment put in a ‘collective work situation.’
In a recent work, the spectacle was the experimentation with the body and the subject’s transit, in a symbolic exchange with 250 textile cocoons distributed by the artist around the gallery walls, each containing the name of the one of the participants. Meanwhile, twelve plants were placed in well-defined points on the cement floor. These plants needed to be replaced and watered on a daily basis. As Palazyan suggests, ‘Harmful plants do not have a beauty-related use; these are works in which we find a different kind of beauty, without commercial value.’ For one month, both the walls and the floor of the central gallery were transformed into a kind of secret garden, where the organic and the post-organic flowered. An ephemeral, metamorphic work of disturbing beauty, it conjugated elements of great creativity with the indicia of hopelessness.
But it should also be noted that on Planet Palazyan, the work of art as idea, as a concept independent of its final formalization, forms the structure of its visual language.
From this ‘mannerist’ overflowing of the languages of art’mixing process art, behavior art, body art, performance, situations, the sociology of the object, and a particular branch of land art’there emerges an aesthetic experience of minimal physicality, even though Palazyan uses the actions of other bodies in an effort toward a ‘language’ that would consume itself furtively, as a work of art, in the transactional flow of time. In the gallery, a video documented the action and the materially subtle works were left as a testimony: on an immaculate white cloth, the artist with great care embroidered the hand lines of each anonymous actor extracted from the cocoons. In this simple way, the disturbing power of beauty encapsulated in objects that appear empty but exist as plural forms of identity was brought to the fore. Such artisanal objects correspond to a new category of three-dimensional art that flirts with the memory of a defrauded utility, with the principle of transparency, and the sordidness of everyday life.



april, 2007
http://www.artnexus.com/Notice_View.aspx?DocumentID=18046

Texto - Marylin Zeitlin | Canal Contemporâneo



setembro 18, 2006

Texto de Marilyn Zeitlin, sobre a exposição de Rosana Palazyan na Galeria Leme

Rosana Palazyan
Curadoria de Marilyn Zeitlin
23 de setembro a 20 de outubro de 2006
Galeria Leme
Rua Agostinho Cantu 88, São Paulo - SP
11-3814-8184 ou info@galerialeme.com
www.galerialeme.com
Segunda a sexta, 10-19h; sábados, 10-17h

MARILYN ZEITLIN
"Ele não é meramente impulsionado a despertar vida em objetos petrificados… mas também a investigar as coisas vivas de modo que se apresentem como antigas,…e, abruptamente, revelem seu significado."
Theodor Adorno
Retrato de Walter Benjamin, 19501

Rosana Palazyan faz obras de arte que são sutis, brutais e sublimes. Seu conteúdo revela a realidade da experiência cotidiana das pessoas com quem ela fala e trabalha: traz à tona os pensamentos interiores de meninos internados em instituições dedicadas à recuperação de adolescentes em conflito com a lei; e de pessoas em situação de rua. Eles são os intocáveis, os párias. Oportunidade é o que ela oferece às pessoas com quem se envolve e que são, com muita freqüência, tanto emudecidas quanto despercebidas. As palavras que o convite dela evoca são, muitas vezes, surpreendentes e mesmo chocantes, não só pela violência e abuso que exprimem, mas também pela ternura e esperança. Sua apresentação é tão delicada que poderia passar despercebida, não fosse também tão atraente que não se pode evitar examiná-la mais de perto para encontrar sua mensagem - e, muitas vezes, recolher-se alarmado. Embora ela tenha feito instalações poderosas - meu primeiro encontro com seu trabalho se deu com instalações2 expostas no Museu Rufino Tamayo na Cidade do México -, as obras muitas vezes são de pequena escala, atraindo-nos a um exame detalhado, a um relacionamento íntimo com os objetos. E é isso que acontece nas obras exibidas aqui: objetos pequenos, brancos, feitos de materiais macios.
Na maioria das culturas, a costura é uma atividade feminina. Neste último trabalho, Rosana retorna ao bordado, um meio que havia deixado de lado durante cinco anos e que considera como uma forma de desenho. Agora, ela o retoma novamente, desenhando as narrativas que reúne e, com a tensão e o paradoxo da beleza como uma linguagem, expressa coisas que são, às vezes, enaltecedoras, e às vezes quase insuportáveis. O bordado sugere intimidade, lembrando coisas que são, muitas vezes, ocultas ou extremamente pessoais. A obra extrai sua força de uma esfera muito particular: os sentimentos e pensamentos interiores e, quase sempre, não-expressos, das pessoas que vivem à margem da sociedade. Ela transformou travesseiros em suporte para seus diminutos palcos teatrais, desenhou suas narrativas em lenços delicados, usando essência de rosas como a fonte de cor e acrescentando esse perfume sutil às obras. Ela criou livros que contam horrores e que têm apenas alguns centímetros quadrados. Ao retomar ao bordado, o meio agora está transformado. Ela partiu para novas referências, para formas naturais: a crisálida e formas botânicas. Ela também se afastou da narrativa explícita, indo em direção à abstração e sutileza. Ao decidir trabalhar dessa maneira, mantendo sua conexão com pessoas rotuladas como "marginalizadas", Rosana volta transformada a seu conteúdo e a seu meio.
As obras nesta exposição sustentam-se por si sós, uma a uma, cada qual com sua própria mensagem. Consideradas em conjunto, criam uma escala para o projeto como um todo que insere a galeria na obra, não só como um receptáculo para a exposição, mas como um elemento estético na instalação. Ao pensar em como apresentaria seu trabalho, com seus detalhes diminutos na arquitetura da Galeria Leme, um espaço que se impõe e chama atenção por si mesmo, Rosana pensou em termos do espaço e da forma como o público poderia vivenciá-lo. O ambiente espacial apresentou um desafio que ela resolveu ao permitir que o edifício funcione como um contraponto, e ao destacar os detalhes de sua arquitetura. Ela explora a grade marcada pelos buracos nos painéis de concreto e os transforma em focos e pontos de ligação para os pequenos objetos que compõem o que se torna uma vasta instalação. As agulhas usadas na costura dos casulos são os instrumentos que os prendem às paredes. Assim ela surpreendeu aqueles que conhecem seus trabalhos anteriores, colocando as narrativas fora da própria obra e dissolvendo nossas expectativas do diminuto ao preencher essa ampla sala, dialogando com a arquitetura e transformando-a em um elemento que colabora com os objetos, e, por fim, levando a grade modernista a um novo domínio.
O trabalho é sublime no sentido em que o secreto e o sagrado são sublimes. Ele revela apenas a ponta do iceberg da pesquisa da artista que, neste trabalho, inclui seu estudo de plantas daninhas5do Brasil e sua interação característica com as pessoas que fazem parte do mundo oculto que subjaz ao mundo aparente. Ele é sagrado no sentido em que penetra no terreno da transgressão. Sacralidade e tabu estão intimamente fundidos, um aspecto da prática religiosa conhecida como budismo tântrico, no qual todas as proibições são acolhidas para permitir acesso a novos níveis de experiência. Rosana adentra a arena proibida para encontrar seu material.
Em sua obra anterior, Rosana trabalhou com meninos em instituições dedicadas à recuperação de adolescentes em conflito com a lei. O que ela alcançou nesse trabalho foi a humanização dos adolescentes internos, ao identificar as percepções que eles tinham de sua própria experiência. Não são generalizações nem estatísticas, não são analisados da distância segura da ciência social e da objetividade. Ela nos permite, por meio de sua própria conexão com eles, ver que o clichê da perda da inocência é inexato, ou apenas uma parte da história. Penso nos primeiros filmes de François Truffaut que, como Rosana, fez obras como Os Incompreendidos3, do ponto de vista da criança. Ambos artistas nos mostram que a dureza da experiência não leva inexoravelmente à insensibilidade, à perda da inocência ou mesmo à perda da esperança. Na elaboração de "... um pedido para a estrela cadente…" Rosana perguntou aos meninos internos quais eram seus sonhos, o que eles pediriam a uma estrela. As respostas cobrem uma ampla gama, desde o cinismo - "você tá brincando comigo?", até o chocante - "uma bicicleta e uma pistola", o desesperado - "quero sair desta vida", o prático - "saber ler e escrever", - e o escapismo total - "eu queria voar"4. Esses pensamentos interiores, que Rosana torna audíveis, refletem indivíduos. Não estamos acessando dados a respeito de um problema social. Estamos ouvindo vozes de seres humanos, cada qual com sua própria vida interior.
As vidas externas que os levaram a essas instituições, contudo, têm características em comum. Eles são os filhos das favelas mais pobres e das ruas, as crianças perdidas de pessoas condenadas a existir sem expectativa de vida, com horizontes cada vez mais restritos para aquilo que consideramos sucesso, com a duração de vida passível de ser interrompida pelo extraordinário nível de violência que se tornou normativo no contexto de seu cotidiano. Estou falando sobre o submundo do crime e do tráfico de drogas que floresce nas grandes cidades do Brasil, mas também no submundo urbano de Nova York, Cidade do México, Bogotá - um fenômeno globalizado tão onipresente que é enfrentado ou com carros blindados e guarda-costas ou por um desinteresse negligente.
Como podemos tornar visíveis as pessoas desse submundo? Como podemos vê-los como nós, não como uma espécie diferente, presa em uma implacável espiral de violência? Rosana acolhe o tabu que os rodeia e fala com eles, envolve-se com essas pessoas invisíveis ou atemorizadas, para ouvir seus pensamentos interiores e colocar suas palavras diante de nós. Em O Realejo, feito para a 26ª Bienal de São Paulo, em 2004, Rosana usou um realejo com um pássaro que faz parte de suas memórias de infância no Rio de Janeiro. A figura nostálgica, com seu chapéu tradicional de copa achatada, com o realejo caprichosamente pintado do qual emanava música, e com o belo pássaro, atraiu a participação das pessoas. A expectativa era de que o pássaro tirasse a sorte para cada um, uma mensagem de boa sorte. Mas, em vez disso, os pedaços de papel continham textos coletados das pessoas que a artista encontrou nas ruas de São Paulo, nos abrigos para sem-teto e nas ONGs que oferecem assistência social àqueles em situação de rua. Eles falam de sonhos, da vida, da sorte, de liberdade e da sociedade. A peça, como a maior parte do trabalho da artista, tem um exterior atraente, dentro do qual se abriga um conteúdo por vezes perturbador e surpreendentemente tocante. A obra nos fala não só dos pensamentos interiores de pessoas em situação de rua com quem ela conversou, mas nos lembra também dos mecanismos do acaso que fazem com que uma pessoa more na rua e outra faça parte de um público de arte. A obra relembra ao espectador os fatores arbitrários que decidem as condições de nossas vidas.
Durante o processo de pesquisa para a realização deste trabalho, Rosana novamente notou a importância dos sonhos e da esperança como instrumentos para a sobrevivência. A tensão entre a realidade da experiência cotidiana de alguém socialmente marginalizado e a vida interior de sua imaginação é uma área de pesquisa que a artista continua a explorar em seu trabalho mais recente.
No trabalho para esta exposição, Rosana coletou histórias de sucesso. Ela desenvolveu sua pesquisa com pessoas que viveram em situação de rua e estão novamente acima da linha de visibilidade social. Por meio de seus esforços hercúleos, transformaram a própria vida, e agora trabalham e pagam aluguel. Cada um deles refere que além das estruturas institucionais que os apoiavam, a mudança foi possível também pela generosidade de uma pessoa que se dispôs a ajudar com oferta de tempo e cuidado. Mas, acima de tudo, suas transformações só foram possíveis a partir de uma decisão interna, uma vontade de mudar.
Neste novo trabalho, mais do que bordar as narrativas de abuso infantil ou do que contar histórias de derrota ou esperança, Rosana deixou que as narrativas permanecessem impronunciadas. As histórias estão sob o trabalho, mas não de modo explícito. Isso marca um novo nível de sutileza em sua obra. Em vez disso, o que ela quer expressar é o processo de transformação. As evidências das transformações são como objetos em relicários. Cada um tem um pequeno lar nas cápsulas semelhantes a casulos que ela criou com tiras de tecido. Sugerem bandagens, mortalhas em miniatura, algo ao mesmo tempo natural e feito pelo homem. Dentro delas, a artista colocou um artefato que confeccionou. Considerando a idéia de que a identidade de uma pessoa está nas palmas de suas mãos, ela desenhou as linhas das mãos daqueles que não estão mais em situação de rua e as representou em bordados em folhas de tecido, como se estivessem escritas em um livro. O trabalho propõe muitas questões. Podemos mudar nosso destino? Podemos superar nossa sina - mudar o traçado de nossas palmas - por meio de determinação própria e da ajuda de alguém que nos estenda a mão?
A artista também passou por um processo de transformação. Este é um trabalho novo para ela. As narrativas, que formavam o sólido núcleo interno de praticamente todas as suas obras que precedem este projeto, agora estão submersas. Ela fez a mesma pesquisa, mas agora deixa as palavras das narrativas como subestruturas, e não mais explicita os dramas em primeiro plano. Esse processo torna o trabalho ainda mais sutil, mais abstrato. O assunto abordado, em vez disso, é a possibilidade e a dinâmica da mudança. É a celebração de resultados positivos contra todas as probabilidades.
O aspecto dinâmico do trabalho reflete-se também nas plantas daninhas que ela plantou nos sulcos existentes entre as placas de concreto do piso da galeria. Literalmente Rosana animou o espaço da galeria ao inserir seres vivos nessas fendas. Durante sua pesquisa sobre lepidópteros Rosana descobriu as plantas daninhas e aprendeu que as populações de borboletas e de outros animais que dependem direta ou indiretamente dessas plantas estão diminuindo com sua eliminação. Por competir com culturas produtivas as plantas daninhas são eliminadas por meio de pesticidas, e com isso a vida silvestre é afetada sensivelmente. Então Rosana pesquisou em livros de agronomia o que define um vegetal como planta daninha. Sua pesquisa revelou que uma planta é considerada daninha se: - crescer onde não é desejada; - não tiver valor de beleza nem utilidade; - suas virtudes não tenham sido ainda descobertas; - nascer importunamente em uma cultura dita econômica e competir com ela por espaço e nutrientes. E que: - as plantas daninhas são muito fortes e resistentes e proliferam rapidamente.
Só se pode concluir que os temas que ela aborda são as suas plantas daninhas: belos, mas no mundo do tabu: pobreza, drogas, alcoolismo, crime. Rosana me contou que em 2005 houve muita discussão sobre a "higienização" do centro de São Paulo. Essa era a palavra usada pelas autoridades, um eufemismo para a remoção dos que vivem das ruas da cidade. Ela aponta como isso é similar à remoção das plantas daninhas de um campo agrícola produtivo economicamente.
Agora, Rosana está cultivando plantas daninhas , comenta que muitas delas são belas - uma beleza que não é comercial - e que são daninhas apenas porque não são queridas. Ela as planta nas fendas entre as placas de concreto no piso da galeria, onde facilmente passam despercebidas, como ervas que crescem nas brechas das calçadas ou em meio aos pedregulhos. Essas plantas não têm valor, são mesmo daninhas, mas duráveis. No entanto, ao colocá-las nos sulcos do piso de concreto, Rosana sujeita-as ao abuso em potencial, mesmo quando não são vistas, mas também as eleva à posição dignificada de "arte".
Rosana penetra na percepção pública das pessoas marginalizadas com quem ela interage e colabora. Esta caracterização pública não deixa de ter um nível de verdade, mas Rosana penetra nessa verdade para ouvir diretamente as pessoas. Essas pessoas confiam nela - em parte porque ela vai ouvi-los, vai descobrir quem são e com o que sonham. A vulnerabilidade é a proteção da artista. Fazer jus à confiança e preservar o material que coleta deles é uma responsabilidade que lhe é bastante pesada. Contou-me que, em 2006, quando um de seus trabalhos que incluía histórias de pessoas com quem havia falado foi vendido, procurou-as para compartilhar o lucro com elas. Encontrou algumas, que se mostraram surpresas com sua oferta, pois sentiam que uma troca mútua havia ocorrido quando haviam conversado. Consideravam as conversas importantes em suas vidas marcadas pela solidão e pelo sentimento de abandono.
Então, tendo decidido trabalhar com pessoas cujas histórias a tocam, como poderia criar uma linguagem que vá além dos clichês e generalizações? Ela o faz usando a abordagem que está no próprio cerne da produção artística: continuamente revelar e ocultar.
O processo de revelação é o drama central desempenhado na inauguração da exposição. Rosana convidou biólogos, cientistas que criam e pesquisam lepidópteros em um borboletário no estado de São Paulo por ela visitado em fevereiro de 2006. As crisálidas que ela fez com tiras de tecido branco contêm um objeto, que o espectador não vê até esse momento. Os biólogos abrirão com cuidado, uma por vez, cada um dos casulos que contêm objetos de arte. A delicadeza dos gestos e a postura científica que lhes são diariamente habituais permeiam seus movimentos. Duplas de biólogos, vestidos como se estivessem em um laboratório, entram na galeria carregando bandejas de instrumentos. Eles removem a delicada folha de tecido, na qual estão bordadas as linhas das mãos de um dos antigos sem-teto e a colocam nas mãos de um espectador. Sendo este tecido transparente, como um véu, as linhas da mão do espectador irão transparecer, fundindo os dois conjuntos de linhas: o do espectador e o do ex-sem-teto. Ao final desse experimento, os cientistas colocam estas pequenas folhas de tecido, nos buracos de onde saíram. Agora liberta da crisálida, a folha de tecido bordado, irá assumir uma forma tridimensional, que talvez sugira a forma de uma borboleta, embora esta seja apenas uma das muitas associações possíveis. Só então a obra estará completa.
Mas o que ela significa? À ciência, Rosana acrescentou teatro e ritual, um ritual que sugere a possibilidade de uma metamorfose quase mágica. Uma pessoa pode mudar seu destino e essa mudança pode ser registrada nas linhas de sua mão? Ela pede que você, espectador participante, compartilhe a perspectiva de um outro, ainda que apenas por um momento. O participante abre suas mãos para que o tecido no qual as linhas das mãos de alguém desconhecido estão bordadas possa ser colocado sobre suas próprias mãos. Desta forma, as linhas da mão de ambos se fundem metaforicamente. Nesse momento, Rosana propõe a você, participante, mesmo que por poucos instantes, o exercício de colocar-se no lugar do outro, de uma pessoa que não conhece e provavelmente alguém muito diferente de você. Você também é capaz de mudar sua vida ou, ao menos, capaz de testemunhar essa transformação em outro ser humano.
Falar sobre este trabalho nos aproxima perigosamente dos clichês que a própria Rosana evita. Ela transmite o não expresso, o que não pode ser dito, e é isso que torna essa obra inesquecível.

Theodor W. Adorno, "A Portrait of Walter Benjamin", em Prisms, originalmente escrito em 1959, tradução para o inglês 1967, reimpressão 1986.

Rosana Palazyan, Caixinha de Música - Love Story, 1999/ 2004. Instalação. Fita bordada, acrílico e mecanismo de caixa de música.
François Truffaut, Les quatre cent coups, 1959.
Rosana Palazyan, O Lugar do Sonho, São Paulo, 2004, contracapa.
Ela escolheu uma planta especialmente bonita: o trevo com flores amarelas que viu nas calçadas das ruas do Rio de Janeiro. Nos Estados Unidos o trevo é cultivado para alimentar o gado, onde também goza de um status de planta "bela", pelo padrão atraente de suas folhas e por suas macias flores cor de rosa.
Posted by João Domingues at 4:55 PM 

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